
O mocassim
Sozinho, ele ia caminhando pela rua esburacada, enquanto pensava na vizinha da esquina, a nova vizinha que usava short azul colado no corpo e miniblusa branca, dando os contornos dos seios de tamanho médio.
- Mulher deveria ser proibida de usa um troço daqueles. Esse povo reclama tanto de gente rica que fica mostrando carro importado por aí e nem liga pra mulher que usa short azul e miniblusa branca. É, e também short preto, deveria ser proibido - resmungava ele, enquanto dava a volta no quarteirão.
Não queria mostrar pra menina logo de cara que não tinha um carro, achava que menina desse jeito só andava de automóvel. Resolveu dar a volta pra não passar andando em frente à casa dela, porque era o caminho do ponto de ônibus e ela veria que ele não tinha um carro.
- Olha, meu Deus, como alguém pode andar de carro numa rua dessas? Prefeito que é prefeito mesmo tinha que tampar buraco, porque quando eu tiver o meu 2.0 eu não vou querer ficar passando nisso, estraga a suspensão toda e amassa a roda.
Caminhava distraído, misturando pensamentos entre o automóvel sonhado e as coxas da vizinha que vira quase sem querer no dia anterior. Era nova a menina, talvez tivesse uns dezesseis anos, coisa boa. Ah, e o cabelo com rabo de cavalo? "Rabo de cavalo sim, esse deveria ser proibido! Homem tem que ficar vendo essas coisas sem poder fazer nada? O ser humano é fraco, homem mesmo não se agüenta diante de um rabo de cavalo."
Virou a esquina e continuou caminhando de cabeça baixa. Olhava os buracos na calçada e agora pensava no seu mocassim novinho que tinha gastado metade do salário. Ricardo era assim: podia não ter dinheiro pra gastar com um carro, mas gostava do bom e do melhor. Andava na linha e até para o serviço ia alinhado, mais chique até do que o chefe. Era a sua desforra quando o velho de bigode, que não tirava o dedo do nariz, enchia o seu saco por causa da lerdeza no computador. Às vezes chegava berrando, gostava de ver o empregado abaixando a cabeça e pedindo desculpas, mas não tirava o dedo no nariz. "Como é que um homem desses consegue uma menina com rabo de cavalo? Nesse caso eu até permitiria, só pro sujeito se danar! Dedo no nariz é pior do que arrotar, porque a gente só arrota quando tá com vontade, mas dedo no nariz não tem vez, é bola dentro. Bobeou, o dedo tá lá. Pior é quando além de tirar sujeira ainda sai colando debaixo das mesas." O Ricardo tinha nojo daquilo. Não tinha carro, é claro, mas tinha educação e um sapato mocassim, que o chefe não tinha. Por isso sempre dava um jeito pedir pra faxineira passar o pano debaixo da sua mesa, porque o chefe a usava depois do serviço e ele não queria encostar naquilo, ainda que já estivesse seco quando ele chegava.
Short azul! Lembrava-se da prima de um colega seu, a menina de short azul mais bonita que já vira na vida. Era curtinho, bem apertado e mostrava as formas da menina de um jeito delicado, extravagante, é verdade, mas ao mesmo tempo delicado. "É isso, short deveria ser que nem o da Clarinha: delicado." Ficara apaixonado pela tal menina, mas desistira na primeira vez em que a encontrara num bar perto da Vila Madalena, no carro de um cara um pouco mais velho do que ele. "Homem não é homem sem um carro!"
Chegou distraído no ponto e ficou encostado no muro sem olhar para os lados, só para o sapato mocassim. Era bonito! Meio marrom, dava um destaque diferente para a sua roupa um pouco gasta, porque ele não estava bem das finanças e o salário não recebia um aumento há oito meses. "No mês que vem eu compro o cinto de couro. Vai combinar, vai sim, melhor do que o outro" O Ricardo era um apreciador de sapato. Não entendia a moda besta de usar tênis, até pra sair de noite. Tênis não era coisa pra homem, menina não gostava daquilo. Só a sua irmã. Mas também aquela era uma desgovernada das idéias, tinha até arrumado um namoradinho cheio de querer bancar o bom da grana. "Moleque besta, fica enchendo a Cecília de presente. Tá achando o quê? Que a minha irmã vai se entregar por causa de uma coleção de CD’s? Mas não vai mesmo, porque antes dela se entregar eu arrebento aquele idiota." Era o carro, era sim. A Ciça, como costumava chamar a irmã quando não estava com raiva dela, só ficara com ele por causa do modelo novinho, ainda na garantia. A irmã jurava que não, mas ele tinha certeza que era. E se não fosse, tinha sido fundamental, porque a Ciça não andava de ônibus, mesmo sendo que nem ele, um pobre. Mas aquele carro... Era o carro, era sim, porque o moleque era feio e tinha um nariz meio avantajado, além de ter as pernas compridas e ser meio torto de um lado.
"Droga de ônibus, tá demorando de novo! Ah, se alguém pisar no meu mocassim eu mato! Povinho mais feio esse que anda de ônibus, só usa tênis, ninguém coloca um mocassim" - pensou, enquanto olhava o relógio comprado a prestação, coisa fina. Nada de digital, era um clássico de metal e ponteiros. "Relógio de homem."
- Que horas são? - perguntou alguém do lado.
Nem olhou de novo, apesar de gostar de ficar de vez em quando observando o relógio. Respondeu seco:
- Oito e quinze.
- Obrigada.
Só viu os pés, estavam de tênis. "Mulher ainda vai, mas homem..."
Levantou os olhos para ler a placa do ônibus que vinha, não era o seu.
- Droga.
De repente o coração disparou e a face ficou corada, mais do que quando ficara sozinho na sala da casa do seu amigo junto com a Clarinha, ela perguntando se ele gostava de descer para o litoral no final de semana. "Litoral... só se for de ônibus, mas aí já é demais! Essa humilhação eu não passo."
Mas agora estava ali, no ponto de ônibus a duas quadras da sua casa, de frente para um menina com rabo de cavalo e miniblusa branca. Era a sua vizinha, a ninfeta que usava short azul! E como estava linda, provocante, carregava os cadernos assim de um jeito largado, como se não estivesse muito a fim de estudar. Tinha adesivos, é, tinha sim! "Adesivo combina com caderno de mulher, fica delicado. De homem não, mas de mulher..."
Lembrou-se que estava no ponto de ônibus, na frente da sua vizinha. No mesmo instante o rosto voltou a ficar rubro e ele não soube o que dizer. Ela estava ali, bem à sua frente, e agora sabia que ele não tinha carro!
Olhou para o mocassim novinho, deveria estar com o cheiro da caixa ainda. Olhou também para o relógio, resolveu puxar a manga da camisa pra ficar à vista. Mas não adiantava nada, ela agora sabia que ele não tinha carro! "Homem tem que ter carro, mulher não sai a pé com um homem, só se já for o marido, e olha lá."
A nuca! Linda, linda com aqueles pelinhos loiros bem fininhos e delicados! Talvez sua paixão por rabos de cavalo viesse daí, dos pelinhos loiros na nuca. Sentia prazer em ficar olhando para eles, seria capaz de atravessar um dia inteiro só admirando uma menina com rabo de cavalo, observando a nuca sensual. "Mulher que não usa rabo de cavalo perde metade da sua sensualidade, não tem jeito." Lembrou-se da ex-namorada, a Rita. "Aquela vagabunda, me trocou porque eu não tinha carro. Foi sim, e não adianta ela querer me provar o contrário. Homem tem que ter carro, senão não adianta." A ex-namorada usava rabo de cavalo, fora isso que chamara a sua atenção.
A vizinha estava parada, parecia impaciente à espera do seu ônibus. Pensou um pouco, não queria puxar conversa com ela, talvez ela nem se lembrasse depois que o conhecia de um ponto de ônibus. Não, seria melhor conversar. Arrumaria uma desculpa qualquer, diria que tinha vendido o carro e que estava esperando o mercado cair um pouco pra pegar um 2.0 novinho. Era melhor assim, ela já tinha visto a sua cara, menina não esquece a cara de um homem depois de saber que ele anda de ônibus. "Não esquece só pra não ficar com ele depois."
- Desculpa, já são oito e meia?
Era a hora, ela tinha puxado assunto de novo e mulher quando puxa assunto duas vezes quer saber mais do que as horas.
- É...
Fez questão de demorar pra olhar no relógio, afinal de contas relógio de ponteiro era coisa fina, coisa de homem alinhado.
- Oito e vinte e cinco.
Não saiu mais nada. E aquela miniblusa ali, branquinha, linda! Sentiu um frio na barriga quando viu a renda por baixo, toda delicada e trabalhada. "Renda... mulher é mais mulher com uma renda!" Mas não poderia perder tempo, era a hora certa.
- Você está atrasada?
Ela olhara em seus olhos! Ah, uma menina com rabo de cavalo olhando para ele...
- Estou. Eu tenho aula de inglês.
Tinha que aprender inglês. Onde já se viu um homem alinhado não saber falar inglês? Sabia o tanto suficiente para trabalhar com o computador, mas ficava só digitando os textos bestas do chefe, tudo em português, não dava pra melhorar. Mas a culpa era do salário, era sim! Se viesse um aumento ele faria um curso, mas daquele jeito...
Lembrou-se do cinto. Vira uma promoção de uma escola de inglês, a matrícula era o preço do cinto. Ponderou um pouco, talvez fosse melhor o curso de inglês. "Se o cara não sabe inglês a menina desencana logo." E o namorado da sua irmã sabia, vivia escrevendo frases em inglês pra ela, naquelas cartas idiotas. "Moleque besta! Irmã minha não se entrega por uma coleção de CD’s, a não ser que me matem!"
- A que horas começa?
- Nove e quinze.
Rapidamente calculou o tempo, de acordo com o congestionamento previsto e as paradas. "Se o motorista for bom, ela chega na hora!" De repente, sentiu outro frio na barriga. "E se o ônibus dela for o mesmo que o meu? Vou conversando com ela, vou sim, e vou prometer uma carona no meu carro quando o mercado abaixar os preços. Tá muito caro agora, é melhor esperar a linha do ano que vem, sai mais em conta."
- Dá pra chegar a tempo. É longe?
- Lá em Higienópolis.
Higienópolis! Sempre quisera morar por lá, no meio de gente importante. "Morar em Higienópolis é quase igual ter carro do ano: mulher vem mesmo, nem que seja só pra puxar papo." Iria morar em Higienópolis, iria sim. Pertinho do centro, perto do serviço, perto da Paulista, lugar fino. Mas tinha que esperar a situação melhorar, não dava pra comprar imóvel naquelas épocas. "O governo tá em cima, não quer que o mercado se abra de novo, senão a inflação dispara. Melhor esperar os juros abaixarem, um dois quartos fica beleza."
- Dá sim, é claro.
Pensou um pouco. A menina, que nuca! Ela estava olhando a avenida lá na frente, parecia mais preocupada em chegar logo à aula de inglês do que em conversar com ele. "Mas se eu estivesse de carro não seria assim, mas não mesmo, porque eu iria dar uma carona pra ela e aí ela iria conversar comigo até Higienópolis. É, bairro bom é Higienópolis."
Olhou pro mocassim. Estava novinho em folha, nem parecia já ter sido usado por duas quadras. Olhou para o relógio. Oito e vinte e oito.
- Você vai todo dia?
- Não, só de terça e quinta. É que hoje eu me atrasei, ainda não conheço esses lados direito, eu sou meio confusa com esse negócio de rua, sempre me perco quando mudo.
Ele nunca havia se mudado. Morava na casa da sua avó, uma velha que adorava ficar assistindo "Aqui Agora" só pra ver a repórter correndo junto com a polícia. "Gente fina não assiste esse programa, isso é coisa de pobre". Não gostava muito da avó, vivia brigando com ela, porque a velha comia macarrão com arroz. "Vê se pode, macarrão com arroz! Só brasileiro sem cultura come macarrão junto com arroz! Gente fina come um ou então o outro, nunca os dois juntos."
A mãe se casara e mudara pra lá com o marido, pros fundos da casa, num quarto e sala com banheiro do lado de fora. Para ele isso era o fim. Vai ver que era por isso que o pai havia se mandado de volta pro Goiás, lá tinha uma casa de frente com banheiro junto. Mas ele não, esse negócio de casa nos fundos não era com ele. Tinha sido persistente e agora morava junto com a mãe e a irmã na casa da frente. A dos fundos alugaram pra aumentar a receita da casa, bastante capenga desde que a aposentadoria da avó tinha sido cortada ao meio. "Governo ladrão!"
- Aqui tudo é simples, você não precisa se preocupar.
- É, eu é que sou meio voada das idéias mesmo.
A menina dera uma voltinha com a cabeça para olhar a avenida e o rabo de cavalo balançara, tocando a miniblusa branca nas costas! "Isso é pecado, meu Deus! Que coisinha mais perfeita, mais delicada!" Desceu os olhos nas costas e colou-os na calça jeans justa. "Falta de educação! Mata do coração, vai! Ah, menina que usa calça jeans justa judia de qualquer um! E de miniblusa branca ainda? Ah, se eu tivesse um carro..."
- Você mora por aqui? - perguntou a menina, quase deixando cair o caderno.
Morava!
- Sou seu vizinho.
- Prazer, meu nome é Juliana.
Estendeu a mão e a face. Que pele macia, nunca tinha visto coisa igual! Não, não iria comprar o cinto, iria entrar num curso de inglês! O mocassim já estava bom, agora precisava saber inglês.
- Ricardo.
Aquele beijo delicado na face trouxera ao seu nariz o cheiro maravilhoso do perfume dela, o cheiro do shampoo nos cabelos ainda molhados e amarrados em forma de rabo de cavalo! "Menina adora se perfumar! Fica uma hora passando cremes, parece gata se lambendo em cima da cama, alisando a pele pra ficar mais macia... Perfume e creme são as armas de uma mulher, são sim!"
Lembrou do seu Givenchy, estava no fim. Por três anos usara o mínimo necessário pra ficar perfumado, mas não abusava pra não gastar, tinha custado quase um terço do salário só com ele. "Aquele namorado da Ciça é um besta, vive falando dos Givenchy dele. Só porque tem carro e fala inglês acha que pode ficar exibindo coleção de perfume pros outros. Ah, mas se a Ciça se entregar pra ele... Eu quebro todos aqueles CD’s!"
- Você mora aqui faz tempo?
Ela esticara a conversa, nem se lembrava mais do inglês! "Mulher quando passa de três frase é porque está a fim!" Tentava esconder que a mão tremia de nervoso, olhou pro mocassim novo, pensou em alguma coisa à toa.
- Não... quer dizer, faz sim.
- É, eu mudei pra cá agora.
Ele sabia, e como! Ficara olhando o alemão descer o sofá de três peças do caminhão, cuidando pra não rasgar o estofado. Vira também um monte de bichinhos de pelúcia, agora sabia ser dela, só podia. "É delicada, é sim! Menina que enche a cama com bichinhos de pelúcia é delicada!" Lembrou-se de novo da ex-namorada, havia gastado uma grana violenta uma vez só para presenteá-la com um bicho de pelúcia, que ela deixava jogado dentro do guarda-roupa. "Foi por causa do carro, foi sim, aquela vagabunda sabe que foi."
- Tem algum lugar legal pra sair por aqui? - perguntou a menina, tentando ajeitar o rabo de cavalo, sem conseguir.
- É...
- Ai, segura aqui pra mim? Eu não consigo arrumar esse cabelo.
Pegou o caderno como se pegasse uma flor. É, tinha adesivos!
- Tem? - perguntou de novo a menina, com a presilha de cabelo na boca e com as duas mãos no rabo de cavalo.
E agora? Se dissesse que havia, ela poderia pensar que ele freqüentava e ali não havia nada decente para ser freqüentado. "Bairro pobre." Lembrou-se de novo da avó, sentiu nojo. A velha botava margarina no pão e depois ia com a garrafa de café lá na pia, onde encharcava o pão com café, virando uma coisa nojenta. "Quando o mercado melhorar e o governo abrir a economia, eu me mudo pra Higienópolis. Um dois quartos é legal, coisa de gente jovem, descolada."
- Não.
A menina já amarrara o cabelo novamente e agora pegava de volta o caderno com adesivos.
- E aonde você costuma ir?
Olhou pro mocassim, estava novinho. Não, não iria comprar o cinto, iria fazer inglês. No caderno dela havia uma frase em inglês: "Don’t worry, be happy!" Sabia o que era "happy", mas não sabia a outra palavra. "Que menina vai querer um cara que não sabe inglês?" O cinto ficaria pro adiantamento do décimo-terceiro.
- Pinheiros. Tem uns barzinhos legais.
- Ah, eu conheço um monte!
Isso era verdade, ele costumava ir pra Pinheiros, mas tinha que voltar cedo. "Se eu tivesse um carro, ficava lá até de madrugada!" A imagem do namorado da irmã voltara à cabeça, aquele idiota estava ficando folgado. Só porque tinha carro achava que podia deixar a Ciça em casa na hora que quisesse. "Se a mamãe não falar nada, eu falo. Olha só, fica dando CD pra ela e a gente nem tem onde tocar. Disse até que vai dar um aparelho importado pra Ciça. Moleque besta, isso eu não vou deixar."
Ele não tinha onde escutar CD. Também, já pensara muitas vezes em comprar, até no mês passado, mas o dinheiro tinha ficado pro mocassim, afinal de contar o tal CD-Player não ia com ele pra Pinheiros no sábado à noite e o mocassim ia.
- Conhece Pinheiros? - perguntou ele.
- Conheço! Se você quiser, a gente pode combinar uma hora de ir junto...
Era um sonho! Sair com uma menina que gostava de usar miniblusa branca e rabo de cavalo, uma "delicadinha" que tinha um monte de bichinhos de pelúcia na cama... Iria sim, iria! Mas como? E o carro?
Ficou triste. Era a oportunidade da sua vida, a chance de ficar com uma menina delicada e ele não poderia aceitar qualquer convite, não tinha carro. "Aquela velha besta, onde é que já se viu encharcar o pão com café? Ah, se eu morasse em Higienópolis..."
- É... pode ser.
- Você vai? - perguntou a menina, toda animada.
Como diria a ela que não tinha carro? Como?
Olhou para o mocassim, estava novinho em folha. Resolvera pagar de uma vez só, esse negócio de prestação não estava em hora boa, os juros andavam muito altos. "Inglês, eu preciso aprender inglês! O cinto fica pra outra hora."
De repente uma idéia lhe bateu na cabeça. "É claro, o mercado está ruim! Ela anda de ônibus, a gente vai lá assim enquanto o mercado não melhora! Eu não vou gastar o meu dinheiro com um 1.8 se daqui a pouco vai ter 2.0 baratinho. Ela anda de ônibus, vai esperar o mercado melhorar!"
- Vou sim! - falou entusiasmado, voltando do seu pensamento e até assustando a menina de rabo de cavalo com a entonação da sua voz.
Iria! O mercado certamente daria uma recuada em pouco tempo, as montadoras estavam pra lançar a linha nova e ninguém iria ficar dando muita grana por um 1.8 frouxo. Além do mais, ele tinha classe, não ficava com o dedo no nariz que nem o seu chefe. "Esse mocassim combinou comigo! Mas o cinto fica pro décimo-terceiro, agora eu tenho que entrar no inglês." Estava maravilhado com a idéia de ir até Pinheiros. Trocaria o vale-refeição por dinheiro com o Marcelo, esse negócio de almoçar era bobeira. Dava até pra sobrar uma grana, quem sabe poderia enfim se sentar num daqueles bares. E acompanhado! Acompanhado por uma menina linda e delicada, de rabo de cavalo e miniblusa branca! Ele amava miniblusa branca, menina delicada tinha que usar daquelas. "Um dois quartos em Higienópolis é a melhor opção. Depois, quem sabe um maior nas Chácaras Flora. Mas Higienópolis é legal e o governo não vai agüentar segurar esses juros altos por muito tempo!" Iria sair com ela, a vizinha! Iria aprender o que significava aquela palavra esquisita, "worry", depois diria que ela tem bom gosto em relação a adesivos, ele também gostava de colar adesivos, ainda mais com frase em inglês.
- Então tchau, Ricardo, eu já vou indo! - disse a menina, caminhando em direção a um carro que parava no ponto de ônibus, carro do seu amigo de escola que resolvera lhe dar uma carona até o inglês, porque ela não sabia pegar ônibus, ainda mais naquele bairro distante e de ruas esburacadas.
Voltou à realidade.
- Tchau...
- Sábado passa lá em casa, tá? - disse a menina, já dentro do carro. - Mas não passa muito cedo, tá Ricardo? É porque eu demoro a me arrumar, não quero deixar você esperando. Depois de Pinheiros a gente dá uma volta lá pros lados dos Jardins, tá? Eu vou te mostrar uns bares legais que eu conheço! Tchau...
O carro acelerou e sumiu pela avenida esburacada. "Arroz com macarrão, vê se pode?" Olhou pro mocassim, estava triste, muito triste. Nada mais de rabo de cavalo, nada de miniblusa branca, de bichinho de pelúcia em cima da cama, de pelinho delicado na nuca, nunca mais. Precisava de um carro, homem não é homem sem carro. "A Ciça que se atreva a ficar até de madrugada dentro do carro daquele magrelo lá na porta de casa! Eu jogo todos os CD’s no lixo!"
Olhou para o mocassim, o ônibus havia chegado. Não iria aceitar que ninguém pisasse no seu mocassim novo, tinha custado muito caro e tinha que estar novo para combinar com o cinto que compraria no mês seguinte. "Homem não é homem sem um carro." Entrou no ônibus e se foi.
Alexandre Henry Alves - Escritor